Quando contempladas numa perspectiva cristã, palavras como amor, felicidade e sofrimento têm um sentido radicalmente diferente daquele usado por nós cotidianamente – radical não tanto no sentido de diferente, mas no sentido de brotarem de uma outra origem e produzirem outros tipos de frutos. Ao me deter nesses temas, não tenho o interesse de escrever sobre mística e espiritualidade – coisa que outros em Aleteia fazem muito melhor do que eu – mas sim de chamar a atenção para as características da mentalidade cristã. Minha questão é não nos perdermos no caminho da fé, desorientados por uma falsa compreensão da experiência e dos valores cristãos.
Nossa visão sobre o sofrimento humano é um exemplo típico dessa divergência entre nosso olhar corrente e um olhar cristão. São João Paulo II desenvolve o tema em sua Carta Apostólica Salvifici Doloris, de 1984. Escrita poucos anos depois do Papa ter sofrido uma tentativa de assassinato, com uma dolorosa convalescença, o texto é não apenas uma reflexão teológica sobre o sofrimento, mas recolhe de certa forma a própria experiência humana de sofrimento do pontífice.
Verificar, antes de teorizar
Ninguém deseja sofrer. A busca do sofrimento por si mesmo é um ato masoquista que se choca com a natureza humana. Nada mais compreensível do que a nossa oração ser para que Deus “afaste de nós esse cálice”, como o próprio Cristo pediu (cf. Mt 26, 39). Contudo, a lógica de Deus parece ir em sentido contrário ao desejo humano…
Quando o Messias vem ao mundo, não vem livrar os seres humanos do sofrimento, mas sofrer como um deles. A inversão de expectativas chocou todo o mundo antigo, quando os cristãos passaram a pregar sua doutrina. Após séculos, nos acostumamos com essa perspectiva, contudo muitos em nossa sociedade deixam de aderir à fé por causa desse fato. Como pode um Deus onipotente e amoroso não nos livrar do sofrimento?
Os desígnios de Deus são misteriosos. Ele não seria Deus se nós – com nossos parcos recursos intelectuais – pudéssemos compreender a lógica com a qual orienta Sua criação ao longo de toda a eternidade. Mas, apesar disso, podemos nos aproximar dessa lógica se nos propomos a verificar a Sua promessa de amor a nós.
Curiosamente, trata-se de uma verificação muito semelhante ao método científico. O cientista não deduz como a natureza deve ser e a partir daí faz uma teoria. Ele, em primeiro lugar, observa o que acontece e, a partir da observação, procura entender a natureza. O que Deus pretende nos deixando sofrer? Por que deixou até mesmo seu Filho sofrer? A resposta a essas perguntas são misteriosas, mas estaremos ainda mais distantes de compreendê-las se não mergulharmos na experiência do sofrimento vivido à luz do amor de Deus.
O sentido é mais forte que a dor
O adulto sabe que existe uma experiência ainda mais terrível que sofrer: ver aqueles que muito amamos sofrerem. Objetivamente, a dor não é última palavra sobre a nossa vida. Um individualismo camuflado se introduz em nossa mentalidade quando imaginamos que a pior coisa que pode nos acontecer é sofrermos com algo que nos acontece. O pior é aquilo que faz a pessoa amada sofrer.
A dor vivida sem a perspectiva do amor se torna, de fato, o sofrimento maior. Mas não tanto pela dor em si, mas pela falta de um amor que lhe dê sentido. Os grandes amantes oferecem a própria dor pelo bem dos amados. Com isso, descobrem um sentido para o sofrimento – e esse sentido torna-se mais forte que a própria dor.
Deus quer que seus filhos muito amados descubram a força do amor, descubram que o amor é mais forte que o próprio sofrimento. Mas, só existe um modo de compreender esse fato: sofrendo com amor. O paradoxo do Deus amoroso que não tirou o sofrimento do mundo se revela como uma afirmação da força do amor.
Essa é uma das conclusões da Salvifici Doloris, que reputo como uma das obras mais essenciais do magistério da Igreja: sofrendo por nós, Cristo deu-nos a chance de nos tornarmos “coparticipantes” de sua obra salvífica, ao também nós sofrermos por amor a nossos irmãos. A grandeza do sofrimento é poder ser doado, como gesto de amor. O sofredor – ao doar sua própria dor pelo bem de outros – está mais próximo do coração de Deus e da justa compreensão do Seu amor por nós.
Uma caminhada necessária
No momento mais aflitivo, chega a ser ofensivo dizer essas coisas a alguém. No auge da dor, todo sofredor acredita que seu sofrimento é incomparável ao dos demais. Um dos efeitos da dor é justamente entorpecer nossa racionalidade e dificultar uma abordagem objetiva dos problemas.
Por isso, a compreensão do sentido do sofrimento é uma questão que temos de enfrentar quando não estamos sofrendo. quando chegar o momento da angústia, os termos têm que estar claros, para que possamos fazer uma justa verificação do “significado salvífico da dor”.
Ser capaz de olhar o sofrimento com um olhar cristão não nos livrará da dor, nem nos colocará num conformismo resignado, mas nos abrirá cada vez mais para os horizontes ilimitados do amor.